Por José Vicente Lessa
A história não se repete; mas os homens sim. A polêmica ora suscitada, aqui e alhures, tanto sobre o emprego da hidroxicloroquina quanto da incipiente vacina contra o COVID-19, teria o caráter do ineditismo. Ressalta-se, como amplamente comentado, o intento de politizar questões que não deveriam extrapolar o âmbito da medicina. Duvidoso porém é seu ineditismo.
Reações marcadas pelo temor, pela depressão e insegurança – todas as influências negativas sobre a saúde mental dos povos –, facilmente extravasam em críticas radicais aos governos: paixões políticas contra ou a favor. Há até quem, quase admitindo o vírus como agente “libertador” fundador, no pós-pandemia, de uma “nova humanidade”, alimente teses milenaristas. São como crentes de uma seita do fim do mundo com data marcada. É impossível mostrar-lhes a insensatez sem revigorar-lhes a crença, em processo descrito por Leon Festinger como “dissonância cognitiva”.
A superação da dissonância virá com o tempo, no esquecimento da atual crise, assim como nos esquecemos do longínquo ano de 1904. Naquela ocasião também misturou-se uma questão sanitária (a vacina contra a varíola) com paixões políticas: o descontentamento com o programa de reforma urbana do Rio de Janeiro. Apaixonados debates no Congresso Nacional e organizações populares não evitaram a aprovação de decreto tornando a vacinação obrigatória. Impuseram-se multas e penalidades diversas aos refratários. Novembro daquele ano foi marcado por violentos distúrbios populares e um tentativa frustrada de golpe de Estado militar. Saldo final da chamada Revolta da Vacina: 945 pessoas presas, 30 mortos, 110 feridos e 461 amotinados deportados para o estado do Acre.
Os debates e as desconfianças com relação à vacina contra a varíola sugerem um paralelo com o que hoje ocorre com a terapêutica contra o COVID-19. Os distúrbios, causados por uma população dominada pela ignorância (inclusive a ignorância enfatuada dos doutos) tinham por contexto oposições às reformas urbanas e os métodos “intrusivos” dos mata-mosquitos em combate à malária, previamente utilizados pelo sanitarista Oswaldo Cruz.
Nos dias atuais, temos reações desencontradas e igualmente apaixonadas dos defensores e opositores de uma vacina – com o agravante dos interesses econômicos de grandes laboratórios – contra um governo disposto a lutar contra um establishment corrupto, ante uma corte suprema aparentemente disposta a sabotar o Executivo, um Congresso Nacional vacilante, juízes e procuradores ditando regras em todo o território nacional. Forma-se um quadro, posto que mais complexo, fundamentalmente parecido com 1904, com elementos para uma escalada ainda mais autoritária e inconsequente.
A Oswaldo Cruz, notável sanitarista disposto a dar à capital do país uma feição racional e moderna, teria faltado habilidade política. A boa notícia é que a população brasileira não é mais, em sua grande maioria, como nos idos da Primeira República, analfabeta e desinformada. Temos hoje, felizmente, a Internet e as redes sociais para, no meio desse bombardeio diário e um tanto anárquico de informações, trazer alguma luz a um público mais esclarecido. A Bolsonaro e demais líderes das democracias modernas não faltará habilidade para conduzir a crise a seu desfecho pacífico. 2020 não repetirá 1904. É certo que as paixões serão sempre inseparáveis da política. Mas serão necessários talvez outros 100 anos para que tantos brasileiros não se sintam tão “confortáveis” em suas prisões mentais.
Excelente análise da atual conjuntura nacional, com suas crenças e radicalismos.